sábado, 17 de dezembro de 2016

Elge Larsson

Hoje é um dia muito significativo para o larp, para mim, e para minha relação com o larp, por n motivos.

Primeiro, há exatos cinco anos eu estava realizando, com os companheiros Cauê Martins e Erika Bundzius, o larp A Clínica: Projeto Memento. Uma produção paradigmática, na minha trajetória no larp e para o larp no Brasil de uma maneira geral, como eu acredito e já deixei explícito em muitas palestras, artigos e inclusive na minha participação no Knutpunkt em 2014. Luiz Prado, que hoje toca os projetos do NpLarp, Boi Voador e FERVO junto comigo, estava entre os jogadores - e considera esse larp um ponto de virada também no seu entendimento da linguagem.

Segundo, eu descobri recentemente que o dia 17 de dezembro marcava, na Roma Antiga, o início das festividades da Saturnália, que é uma ocasião que, além de ter suas relações com a linguagem do larp, dá nome ao grupo de larp de Dourados - MS, encabeçado por Tig Vieira, que eu tenho a felicidade de ter incentivado e acompanhado à distância graças a generosidade e curiosidade deste interlocutor

E terceiro porque hoje, em algum lugar de Estocolmo, na Suécia, está sendo celebrado, enquanto escrevo essas linhas o Memorial Evening de Elge Larsson (1944–2016), uma noite dedicada à sua memória.


Elge deixou esse mundo para finalmente transgredir a realidade física (como disse Mike Pohjola na ocasião de seu falecimento) entre os dias 3 e 4 de novembro. Foi vítima do câncer, contra o qual lutava há anos. Quando o conheci - virtualmente - já estava doente. Lembro dele ter mencionado que não estava podendo viajar de avião, por conta de complicações de saúde.

Mais tarde, apresentou tamanha melhora que chegou a mencionar que talvez viesse para o Brasil, visitar um amigo - outro sueco que está morando aqui, e com o qual eu também me correspondia. A última coisa que eu disse a Elge Larsson foi “Come to Brazil, Elge”, em resposta àquela afirmação.

Mas o câncer é uma doença traiçoeira - e Elge voltou a piorar. Sua última postagem no facebook - a não ser é claro por um vídeo humorístico - foi um “cancer report” onde ele dizia que os médicos haviam lhe dado não mais que um ano de vida. Foram apenas alguns dias, infelizmente.

Quem passar os olhos pela linha do tempo de Elge naquela rede social poderá ter ideia do quanto ele era querido e amável. Os relatos e depoimentos, todos, concordam em vários aspectos. Ele era um homem muito generoso e com um espírito jovem. Recusava o título de “vovô do larp”, como recusava ser tratado de forma diferente por ser mais velho. Representava o encontro de duas subculturas, marginais e transgressoras: o movimento hippie e o larp. Era, para muitas pessoas, como um padrinho acolhedor, mas sobretudo, para a maior parte deles, um amigo. Há posts de muitas pessoas ali: de “celebridades” do mundo do larp como Martin Ericsson (da White Wolf) e Claus Raasted (dos larps de Harry Potter), de familiares, amigos e pessoas que o viram poucas vezes (especialmente alguns alunos seus da Faculdade de Magia e Bruxaria, onde ele costumava ser professor). De faixas etárias, nacionalidades e biografias completamente diferentes. Muitos parecem concordar com a importância que Elge teve em suas vidas - de alguma forma ele fez a diferença.


Eu não o conhecia pessoalmente, mas a morte de Elge me acertou com impacto profundo. Um impacto que dificilmente eu poderia imaginar que esse evento teria.

Eu conheci Elge através do coletivo Deltagar Kultur/Ineracting Arts. Foi um dos primeiros materiais do larp nórdico ao qual tive acesso - talvez antes mesmo de conhecer o Dogma 99. (Isso foi em 2009? 2010?) Trata-se de um coletivo sueco que, entre outras produções que me fascinaram (como uma atividade com máscaras em praça pública que parecia ser um larp, ou um mp3 para baixar e seguir as instruções na cozinha, que influenciou minhas pesquisas também no fazer teatral com o coletivo Sáfaro… avataravo) tinha publicado, no issuu, duas edições internacionais da revista Interacting Arts. “Nós somos o que acontece quando o escapismo contra ataca”. “Roleplaying Radical”. Eram os slogans da publicação, com forte teor político, que me deixou apaixonado.

Algum tempo depois, eu passei a acompanhar as demais atividades e publicações do grupo à distância. (Até seu fim, há alguns anos). Uma postagem singela no blog do Eirick Fatland (Tips & Traps) abriu minha cabeça de modo muito potente para o que significava esse diacho de “arte participativa”. E eu passei a namorar muito seriamente o livro Deltagar Kultur, por alguns anos, que só existia em sueco e estava disponível em copyleft pela internet.

A inquietação e curiosidade acabou me levando, em 2014, a procurar os autores diretamente para saber mais a respeito. Consegui o contato de dois deles, Elge Larsson e Gabriel Widding, que foram muito generosos e acolhedores. (Diga-se de passagem, duas palavras que parecem caracterizar Elge são “transgressão” e “generosidade”). Widding inclusive é quem organiza o evento da noite de hoje, em homenagem ao colega e amigo. Mais jovem e com uma pesquisa que engloba também o teatro, Widding tinha estado recentemente no Brasil para um festival de Teatro Épico. Mas quem deu atenção a minha curiosidade pelo Deltagar Kultur foi Elge Larsson. Os quatro autores haviam começado uma tradução para o inglês, que não havia andado por falta de um editor.

Deixando muito claro que estávamos na absoluta ilegalidade, Elge contrabandeou essa versão para mim - e foi o primeiro livro em inglês que eu li até o final. Vale dizer nesse ponto que apesar o meu envolvimento com a cena de larp internacional meu inglês é péssimo. O que nunca impediu Elge de elogiá-lo, mesmo que vez ou outra não entendesse nada do que eu dizia. Desse episódio em diante, conversamos bastante pela internet. Eu animado por ter um interlocutor sueco, mais velho e mais experiente que eu. Ele animado por ter um leitor engajado no Brasil (o que para alguém na Suécia deve ser bem bacana mesmo, visto que o livro em questão sequer havia sido publicado em inglês).

Passei a incorporar a leitura do Deltagar Kultur em meu repertório e, com autorização dos autores, a cavar aqui no Brasil uma oportunidade de publicá-lo em português. Elge Larsson e Gabriel Widding me garantiram que eles poderiam vir ao Brasil para o lançamento, caso isso realmente se concretizasse.

É aqui que a história ganha ares mais impactantes.

O contato com a editora que ia publicá-lo acabou esfriando, junto com a procura por um tradutor parceiro, que topasse dialogar comigo e com os autores sobre as possibilidades e especificidades da produção. Até que, no dia 18 de outubro deste ano, após a defesa de mestrado do colega sorocabano Tadeu Rodrigues Iuama, ele próprio retomou o assunto. “Agora que eu terminei o mestrado, vamos fazer aquela tradução do Deltagar”. Grande parceiro, professor de inglês e mestre em larp por uma faculdade de comunicação, a notícia não podia ser mais bem vinda. Combinei de apresentá-lo ao Elge Larsson, meu contato, assim que voltasse para São Paulo. Mas estávamos às vésperas do Encontro de RPG do CCJ, onde todos os anos acumulo muitas funções, e pedi para esperarmos alguns dias. Na semana seguinte, estava envolvido com os preparativos para a festa de aniversário da minha filha - e acabei não fazendo o combinado também. Tendo em vista minha demora, o próprio Tadeu Rodrigues o procurou. Elge foi solícito, como sempre, mas monossilábico. Enviou para ele todos os arquivos, os contato dos demais autores e a confirmação “Go Ahead”. Foi tudo o que ele disse. (isso foi no dia 30 de outubro).

No dia 4 de novembro, debatíamos eu e o Tadeu Rodrigues sobre minúcias da tradução. Dia 6, de manhã, foi ele quem me deu a notícia. Elge Larsson estava morto. Foi a primeira coisa que soube ao acordar.

Foi por um triz.

Eu deixei de apresentá-los. Deixei de trocar as últimas palavras afetuosas com o Elge (ele sempre era absolutamente afetuoso, mesmo sem me conhecer pessoalmente). Elge também não viria ao Brasil. Nem para ver seu amigo que está morando aqui, nem para o lançamento de seu livro em português. Eu não poderia conhecê-lo pessoalmente e passar alguns momentos com ele em um futuro Knutpunkt. Não poderia ouví-lo falar sobre o larp como possessão, ou qualquer outro assunto que ele viesse a desenvolver, quando meu inglês me permitisse entender o enunciado com tranquilidade.

Mais que isso.

Elge foi a primeira pessoa envolvida com larp, que eu conhecia e com quem eu dialogava, que eu “vi” morrer. Para mim, foi de certa maneira um aviso: Elge leva com ele todo o conhecimento que, de alguma forma, não passou adiante.

No início desse ano, eu me comprometi com uma missão - que como todo compromisso de ano novo, neglicenciamos - a produção de conhecimento é mais importante que disseminação de informação. Trabalhamos muito, mas falamos pouco sobre nosso trabalho. A morte de Elge me deu a dimensão da efemeridade desse conhecimento acumulado. O que não registrarmos em textos, vídeos, o que não passarmos adiante em histórias e convívio, se perderá.

A linha do tempo de Elge no facebook passou a revelar uma porção dessas histórias. (Uma infinidade de outras, ele levou consigo). Ele é um dos organizadores do larp Dragonbane (aquele com o dragão de 15 metros). Mas até então eu não sabia que ele havia pedido dinheiro emprestado para o Claus para cobrir uma dívida de produção do jogo - e que a relação dele com dinheiro era séria, mas desapegada. Eu também não sabia que foi ele quem traduziu A Jornada do Herói, do Campbell, para o sueco. Ele também apresentou em 2014 (o mesmo ano em que o Wagner Luiz Schmit e eu apresentamos meu artigo no Knutpunkt) uma fala brilhante sobre imersão como possessão, cujas anotações ele publicou na internet. A gravação em vídeo sofreu algum problema e nunca foi compartilhada, mas outro amigo estava lá assistindo, o português José Jácome, e me deu alguns detalhes sobre como foi a exposição.

Eu demorei alguns dias para entender e interpretar o que essa perda significava para mim. Uma sessão com meu terapeuta foi toda dedicada a compreender o que isso queria dizer. O emaranhado de relações simbólicas, de coincidências, de sincronicidades, influências e correspondências.

Com meu psicólogo, entendi que a vida de uma pessoa ganha outro sentido no momento de sua partida. E pessoas do mundo inteiro, nesse momento, estão celebrando essa passagem nesta noite. Em Elge, perdi um interlocutor generoso, e ganhei um modelo sobre o qual refletir, uma obra sobre a qual me debruçar.

Elge foi embora, restam os resultados de seu trabalho, as influências pequenas e/ou grandiosas que ele deixou em sua passagem por nosso mundo - e uma porção de ensinamentos e sensibilizações que ainda vão se desdobrar para sempre, no que permaneceu de suas ações, e nas ações daqueles nos quais algo dele permaneceu.


* Luiz Falcão é fundador do Nplarp.

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