terça-feira, 6 de dezembro de 2011

No Brasil: O Jogo Imita a Vida

O texto abaixo é de autoria de Clayton Mamedes e encontramos sua publicação datada de 20/12/2008 no site RedeRPG. Apesar disso, é um texto pouco conhecido e difundido. Não é extremamente preciso ou completo, mas até hoje é um dos textos mais relevantes sobre o assunto produzidos por um brasileiro e em língua portuguesa. Para nós, leitura obrigatória. Três anos depois, reproduzimos o texto na íntegra com autorização do autor e mantendo os links originais (alguns dos quais, sabemos, já estão quebrados).


Todo mundo que joga RPG há algum tempo já ouviu falar (ou até mesmo já jogou) Live Action, porém não custa dar uma pequena recapitulada.

Live-action ou Ação ao Vivo é um jogo de RPG onde tanto os jogadores quanto NPCs interagem de forma real, ou seja, interpretando literalmente o seu personagem, tanto na maneira de se vestir, comportamento, etc. Para tanto a ação se desenvolve em tempo real em um local predeterminado, sendo uma reprodução das localidades onde a trama se desenrola. O grande tema dos LARP (Live Action Role Play) é a imersão total, seja na forma da ambientação, caracterização das pessoas e diálogos. Para muitos, as partidas de LARP acabam se transformando em uma imensa válvula de escape, ou uma maneira de se desligar do mundo real por alguns instantes.


Origens e Histórico dos LARPs


LARPs têm sua origem provavelmente em jogos de criança; aqueles do tipo “Índio e Cowboy”, “Casinha” e “Médico”. O mais interessante ainda é que estes jogos possuem raízes em atividades muito mais antigas, equivalentes em diversas culturas durante a história da Humanidade. Tecnicamente muitos jogos de criança são simples LARPs. Assim, o conceito geral deste tipo de jogo está presente entre nós desde a Antiguidade. Contudo, a introdução dos RPGs de mesa no EUA em meados de 1970 ajudou muito o desenvolvimento do estilo de LARP que hoje é praticado por adultos.

LARPs provavelmente foram inventados a partir do nada muitas vezes, por diferentes grupos em diferentes localidades, apoiando-se nas idéias, conhecimento e tradições da região, assim como se inspirando em relatos de LARPs estrangeiros. Este fato fez com que o jogo se espalhasse por diversos paises, figurando diversos estilos de contar e viver histórias.

LARPs têm sido praticado por adultos há milênios. Na Roma Antiga, China e Europa medieval existia um tipo de atividade onde os participantes fingiam ser pessoas de idade mais jovem, apenas com o objetivo de puro divertimento. De forma análoga, os LARPs também foram utilizados para exercícios, com combates falsos (kriegspiel ou War Games) servindo como treino militar, cirurgias e julgamentos de mentira para médicos e advogados.

Outro aspecto inicial dos LARPs é a improvisação teatral. O teatro de improvisação moderno surgiu durante as aulas de “jogos teatrais” de Viola Spolin e Keith Johnstone em 1950 que utilizavam os exercícios como técnicas para o treinamento de atores. Já o livro de G. K. Chesterton publicado em 1905, o The Club for the Queer Trades mostra uma história descrevendo uma organização comercial através de aventuras cujos estágios lembram um LARP. Possivelmente esta obra foi uma grande inspiração para os jogos comerciais.

Existem registros de jogos estilo LARP criados nos EUA dos anos 20, normalmente por clubes e entidades semelhantes, com o objetivo de recreação. Também há indícios de LARPS de assassinatos numa Nova York de 1920, assim como o surgimento de jogos para fins psicoterapêuticos, chamados de psicodrama, chefiados por Jacob L. Moreno.

Nos anos 60 tivemos a criação dos LARPs de Fantasia, originados com a fundação da Society for Creative Anachronism, na Califórnia em 1966. Outro grupo similar também em Maryland, promovendo a recriação precisa da história e cultura medievais, com leves elementos de fantasia.

Após a publicação do primeiro RPG de mesa, o famosíssimo Dungeons & Dragons em 1974, os LARPs de Fantasia começaram a se desenvolver em vários locais de forma independente.


Estilos de LARP:

Assim como os RPGs de mesa, os LARPs podem ser classificados em alguns estilos básicos de jogo, sendo que existe uma imensa área de intersecção entre os mesmos. A classificação abaixo é abrangente o suficiente para enquadrar vários vertentes de jogo.

Avant-garde:
Muito comum em paises nórdicos, LARPs avant-garde ou arthaus são eventos ecléticos que utilizam temas e técnicas experimentais, inspirados em alta cultura finas artes. Normalmente são jogados em festivais de arte, museus ou teatros com temas centrados em aspectos reais de nosso mundo, como política, cultura, religião, sexualidade e condição humana.

Festival:
Um LARP Festival reúne centenas de participantes, normalmente divididos em facções rivais acampadas em um grande campo. Geralmente reproduzem temas medievais. Muito comuns na Europa, Reino Unido e Canadá.

Linear:
Consiste em um jogo onde um pequeno grupo de PCs encara uma série de desafios oriundos de NPCs. Como este estilo de LARP tem como principal característica ser altamente controlado pelo GM e equipe, é chamado de linear.

Manipulativos:
LARPs deste tipo misturam ficção com realidade do dia moderno, criando um aspecto de realidade alternativa. Eventuais observadores que não estão cientes de que se trata de um jogo podem ser tratados com parte da trama ficcional, assim como materiais do mundo real como websites.

Teatral:
Um LARP teatral caracteriza-se por combates simbólicos, uma abordagem eclética ao gênero e cenário utilizados, e extremo foco nas interações entre os personagens, que são escritos pelo Mestre. Normalmente são jogados durante convenções, durando poucas horas e requerendo pouquíssima preparação pelos jogadores.


Gêneros de LARP

Espionagem:

São inspirados por ficção de espiões, como a série 007. Algumas vezes se baseiam em temas do mudo real, com o objetivo de melhorar a identificação entre jogador e personagem. Costuma evitar o combate.

Fantasia:
Este gênero de LARP é o mais comum e utiliza ambientações inspiradas pela literatura e RPGs de fantasia medieval, como Lord of The Rings e Dungeons & Dragons. Normalmente utilizam combate físico e foco na competição entre personagens.

Histórico:
Ao invés de situar a ação no tempo atual ou utilizar cenários de fantasia medieval, os LARPs Históricos reproduzem o nosso mundo em algum ponto específico de nossa história, como Inglaterra Vitoriana, Os Anos 20, Guerra-Fria, etc. A precisão histórica e a utilização de Props (ver mais adiante) e vestimentas adequadas, são altamente valorizadas neste tipo de LARP.

Horror:
Utilizam a rica ficção de horror como inspiração, indo de aventuras cujo tema seja um Apocalipse de Zumbis até o horror psicológico dos Mythos de Cthulhu.

Simulação Militar:
Foca na simulação de operações militares, muitas vezes utilizando combate real com pistolas de paintball e similares. Alguns grupos mais dedicados simulam os combates com tanta realidade que acabam lembrando exercícios militares reais.

World of Darkness:
Baseado no RPG de mesmo nome, publicado pela White Wolf, este tipo de LARP utiliza o cenário punk-gótico do seu primo de mesa, onde os jogadores interpretam criaturas sobrenaturais como vampiros e lobisomens. Usualmente se utiliza os sistema Mind’s Eye Theatre durante as partidas, que normalmente fazem parte de uma crônica, ou uma série de eventos interligados. Muitas destas partidas fazem parte do projeto One World bt Night, onde todo o cenário, tramas e personagens são interligados em um rede mundial. Trata-se de um dos gêneros mais jogados no mundo.

Ficção Científica:
São LARPs que utilizam cenários futuristas baseados na literatura e cinema de ficção, como Star Wars, Star Trek e similares. Costumam arrastar grande numero de adeptos, principalmente em convenções dedicadas ao assunto.


A “Realidade” no Brasil


O universo dos LARPs no Brasil praticamente obedece o mesmo padrão que é observado na maioria dos outros países. Os gêneros mais jogados são os de Fantasia Medieval, World of Darkness, Sci-Fi e Horror, porém seguindo algumas particularidades bem típicas.

No Brasil, como a imensa maioria dos LARPs são jogados durante convenções, o estilo Teatral acaba predominando, não importando o gênero do mesmo. O Mestre cria uma trama inicial (Plot), que afeta um grande número de personagens; o desenrolar da trama deve-se inteiramente a interação entre os jogadores/personagens, não existindo (ou em quantidades mínimas) eventos predeterminados. É só você se lembrar do último LARP que jogou no EIRPG: o Mestre distribui os personagens, fornece as informações iniciais, e pronto: o resto é com os Jogadores.

Este tipo de abordagem também predomina em LARPs de WoD, jogados até mesmo em locais particulares: devido à estrutura do próprio universo de jogo, o mesmo acaba se desenvolvendo como uma LARP Teatral, onde as intrigas entre clãs e politicagem entre as posições formam o caldo grosso da trama. Em resumo, é um Live Jogador x Jogador.

A esse estilo de jogo, no Brasil dá-se a nomenclatura informal de LARP de 1ª Geração, por representar os primeiros eventos jogados aqui em nossas terras, e os mais comuns lá fora.

Porém, após a chegada ao país das primeiras cópias do Cthulhu Live um novo fator foi adicionado ao cenário acima: a abordagem dos LARPs proposta pelo recente livro difere da normalmente praticada em um simples e direto aspecto: a estrutura Jogador x Jogador dá lugar a JogadorES x Mestre. Estão criados os LARPs de 2ª Geração.

Outra mudança importante pode ser percebida no estilo do evento, que passa a ser predominantemente Linear: ao invés de deixar a trama sob responsabilidade das ações dos Jogadores, o Mestre possui toda a Plot do LARP detalhadamente descrita, com ênfase na cronologia dos fatos; é sabido, por exemplo, que após os personagens acordarem, eles encontraram uma cópia do antigo tomo maligno.

Com a utilização dos eventos programados, o LARP tende a ganhar em estrutura, pois a mesma encontra-se devidamente coesa devido ao controle do Mestre. O fato dos Jogadores ter que se unirem para superar os obstáculos também adiciona ao clima de jogo. Como já se sabe o que provavelmente irá acontecer, o Mestre pode se preparar melhor, criando efeitos especiais (iluminação, sons, etc.) e props, palavra genérica utilizada para descrever os objetos que são encontrados pelos jogadores durante o LARP, como pergaminhos envelhecidos, diários de pesquisadores insanos, tecido alienígena e tal. A adição de props convincentes melhora e muito o impacto de uma cena ou ato em um LARP.

Uma nota cabe neste momento: a utilização de efeitos especiais e props pode muito bem ser realizada em LARPs Teatrais também (o que é altamente recomendado). Apenas a estrutura deste tipo de Live que torna a sua utilização um pouco mais difícil para o Mestre. O ponto fraco do LARP estilo Linear é que funciona melhor com um reduzido número de Jogadores, inversamente proporcional ao evento Teatral.

Este artigo não tem como objetivo estabelecer que uma abordagem para LARPs seja superior a outra. Apenas tenta oferecer uma visão mais ampliada do que é possível se fazer e que resultados obter, entendendo de forma bastante abrangente os pormenores deste tipo de evento. O que vale, no final das contas, e a pura diversão e a dimensão da válvula de escape que somente os LARPs podem oferecer.

Antes de realizar o seu próximo LARP, pense um pouco no que foi exposto aqui. Apesar de ser somente a ponta de um imenso iceberg submerso, deve provocar um pouco de curiosidade. Pode ser um confronto de uma tribo bárbara contra cavaleiros de uma ordem mística, ou a luta de um bando de vampiros neófitos tentando ganhar a confiança dos outros membros da cidade, ou uma visita a um sanatório para remover um amigo insano... o que vale é a diversão!


Referências:

1. Play Science – the Patterns of Play: www.nifplay.org;
2. History of Larp: www.whyilarp.com;
3. Laivforum: www.laivforum.dk;
4. H.P. Lovecraft Historical Society: www.cthulhulives.org;
5. Larp Magazine: www.larpmag.com

2 comentários:

  1. Muito bom texto, um achado e tanto que usarei para referência futura.

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  2. Lucas, esse texto foi o estopim de nossa pesquisa.
    A partir dele descobrimos muitos caminhos e referências, é ainda um texto pouco conhecido e, embora meio defasado, ainda o acho muito "desbravador"!

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